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sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

O NEGRO ABOLIDO PELA REPÚBLICA


REVISTA REPÚBLICA
MAIO / 1998

 

O NEGRO ABOLIDO PELA REPÚBLICA
Paulo Vieira

Há exatos cem anos, suicidava-se André Rebouças, engenheiro, empresário, monarquista e abolicionista do Império que defendia o fim do latifúndio no Brasil e identificava o republicanismo com os interesses dos senhores de terra.

 

A História não foi leve com o engenheiro baiano André Pinto Rebouças, morto há exatos 100 anos em Funchal, Ilha da Madeira. Apesar de legar inúmeros estudos, registrar seus passos por 26 anos num diário e sistematizar sua correspondência, teve seu idéario e trajetória quase apagados da memória oficial (e republicana) brasileira numa demonstração clara dos desvios impostos pela política na historiografia nacional.

Que a história tenha se esquecido de Rebouças (1838 - 1898), contudo, não é surpresa. Ele mesmo considerou sua vida "fracassada". Como engenheiro, ainda que tenha recolucionado a técnica de construção de portos no Brasil, deixou poucas obras; como empresário, embora alguns o chamassem de "segundo Mauá", jamais prosperou; como abolicionista, não chegou a ser um líder. Pior deve ter feito à sua memória o fato de ele ter sido ferrenho oponente da República e deixado o país no mesmo navio de D. Pedro 2º. Seus anos de exílio (ele não concordaria, diria apenas: "segui o Império") foram tomados por tentativas de restaurar o imperador destronado - mais um projeto frustrado. Por fim, suicidou-se aos 60 anos.

A efeméride passaria em branco não fossem uma (possível) sessão pública na Academia de Letras da Bahia, onde Rebouças é patrono da cadeira 32, e a publicação de O Quinto Século - André Rebouças e a Construção do Brasil (Editora Revan), uma tese da doutora em sociologia Maria Alice Rezende Carvalho. O Rebouças que ela evoca é menos o engenheiro inovador ou o abolicionista ferrenho e mais o homem preocupado em mudar a sociedade brasileira da segunda metade do século passado, contaminada pelo que chamava "parasitismo dos teocratas, oligorcas, aristocratas e plutocratas".

Rebouças, um negro freqüentador da Corte, filho conselheiro e com um piano de cauda Pleyel em casa, queria o Brasil no "caminho americano". Pregava a pequena propriedade rural (15 a 20 hectares), admirava o homestead norte-americano e via como "complementos indispensáveis" à abolição a taxação de terras improdutivas, o registro de propriedades e o fim dos latifúndios. Era também um talento multidisciplinar. "Matemático e astrônomo, botânico e geólogo, industrial e moralista, higienista e filantropo, poeta e filósofo", na definição do amigo e correspondente Joaquim Nabuco. Proponente de demonstrações alternativas do teorema de Pitágoras, pioneiro de novos modelos de administração pública, mesmo assim o pouco que a memória nacional guarda se refere apenas ao Rebouças engenheiro.

Em parte, isso pode ser creditado a uma homenagem póstuma. Ele batiza uma fundamental obra viária carioca, o túnel Rebouças - que, justificadamente, o celebra por, já em seu tempo, pensar o Rio de Janeiro atravessado por túneis. Ao irmão, Antonio, também engenheiro, coube denominar uma avenida em São Paulo. Contudo, Rebouças não é autor de edificações importantes. Sua contribuição à engenharia é mais "subterrânea": a primazia na importação e uso do cimento Portland em substituição à "cal do reino" (mistura de cal e oléo de peixe); o pioneiro na utilização de escafandristas em obras submarinas; o corpo teórico que produziu (expresso em inúmeros cadernos, como Higiene, As Secas nas Províncias do Norte, Garantia de Juros, etc.), e as aulas na Escola Politécnica.

Em seu livro História da Engenharia no Brasil, Pedro Carlos da Silva Telles diz acreditar que Rebouças seja "o primeiro homem não branco a conquistar diploma de engenheiro". Também o considera "um dos mais notáveis, senão o mais notável" professor a ministrar aulas na Escola Central (depois Politécnica), no Rio. Em favor da tese, podem ser enumerados alguns feitos: Rebouças organizou uma terminologia técnica de engenharia (quando tal não havia nem nos centros mundiais mais avançados), instituiu na Politécnica o curso noturno e introduziu apostilas em suas aulas.

O administrador e empresário Rebouças durou apenas nove anos e produziu 13 grandes projetos, como a construção de docas no Rio de Janeiro, Paraíba, Pernambuco, Bahia, ferrovias no Paraná e uma companhia de abastecimento de água no Rio. Para cada um desses, Rebouças fez estudo de viabilidade econômica, oranizou sociedades, levantou capital estrangeiro, apresentou monografias ao imperador, fez lobby e defesas ardorosas em debates pela imprensa. Mas ele não foi exatamente bem-sucedido em suas empreitadas. Sua idéia de formar companhias e, com elas, explorar as concessões que obtinha do Império, algo inédito numa terra dominada por "engenheiros-funcionários", como dizia, foi interpretada apenas como estratagema para obter alguns benefícios financeiros.

As frustrações de Rebouças também ocorreram, é claro, no campo das idéias. Uma passagem de Benjamim Franklin, estudo biográfico sobre estadista e pensador norte-americano que publicou no jornal Novo Mundo em 1876, parece refletir isso: "É bem singular, mas o homem tem raiva à idéia nova. Só espíritos verdadeiramente superiores aplaudem de coração as descobertas em qualquer ramos dos conhecimentos humanos. E, no entanto, os discípulos de Jesus Cristo repetiam: 'Aprendei a verdade e ela vos libertará."

Apesar da consciência dessa resistência humana à novidade, Rebouças não se furtava a empreitadas de vulto, conquistando inimigos e desafetos no caminho. Foi o que aconteceu quando se tornou engenheiro da Doca da Alfândega, seu primeiro grande projeto. Ao idealizar uma taxa de atracação e armazanagem, para subvencionar as obras, contrariou interesses dos donos de saveiros de Recife, representados na Câmara por deputados pernambucanos. Depois, quando recebeu a concessão para uma segunda doca, os problemas se avolumaram: embargo da obra, acusações de suborno, venda em massa de ações por parte dos acionistas, levando Rebouças a uma compra desesperada que ceifou suas economias. O pior viria depois, quando o inspetor da Alfândega proibiu o embarque de café e o armazenamento de vinho na doca.

Rebouças teve a mesma sorte na campanha pelo abastecimento de água no Rio. Em meio a uma seca pronunciada, entrevistou-se com o imperador e propôs a cobrança de uma taxa mínima pela água. "Combatemos também a falsa idéia, que tem o imperador, de dar água aos pobres gratuitamente nas fontes e lhe demonstramos que é muito mais liberal e higiênico dar aos pobres água em domicílio", registrou em seu diário. Sob protestos, mas contando com o decidido apoio do chefe do gabinete de ministros, o Visconde de Itaboraí, Rebouças conseguiu levar, em um mês, 2,4 milhões de litros d'água à população carioca. Posteriormente propôs a organização de uma companhia para a ampliação e exploração do serviço, mas foi preterido em prol da Companhia City, cujo projeto baseou-se em soluções idênticas às suas.

Contemplando essa década fracassada, a socióloga Maria Alice Carvalho vê claramente a dicotomia que separava Rebouças de parte importante do poder imperial. Diz ela: "(...) É razoável aventar a hipótese de que, além de considerar os engenheiros-funcionários responsáveis pela obstrução de seus projetos e colaboradores do governantismo, do excesso de burocracia e, portanto, da cultura do parasitismo, Rebouças também visse neles uma força ativa e contrária ao desenvolvimento do ankismo no Brasil - uma revolução cujas possibilidades de êxito dependiam de uma base material em expansão e com condições de organizar interesses cada vez mais amplos da sociedade. O que tornava as Cias preferíveis a eles".

Essa inadequação e seus sucessivos insucessos profissionais acabaram por fixá-lo na Escola Politécnica, onde já havia sido professor-interino de botânica e zoologia. Em 1870, tornou-se catedrático em engenharia. A partir desse ano, passa a militar pelo abolicionismo. Os compêndios de história pouco falam de sua participação no movimento, apesar das palavras de Nabuco: "Da abolição ele foi o maior, não pela ação exterior, ou influência direta sobre o movimento, mas pela força e altura da projeção cerebral, pela rotação vertiginosa de idéias e sensações em torno do eixo consumidor e canadente, que era para ele o sofrimento do escravo. Se Rebouças ainda é visto no seu tempo como uma estrela de segunda grandeza, é porque estava mais longe do que todas".

A agenda abolicionista de Rebouças divergia da que tinham os republicanos, com as quais Rebouças associava os landlords (senhores) brasileiros e até mesmo o "fazendeirismo escravocrata". Ele irá registrar em seus Elementos para o Cadastro Geral: "a abolição do latifúndio é ainda mais auspiciosa que a abolição do escravo. No dia em que os 8.337.218 quilômetros quadrados da mais fértil terra do mundo puderem ser oferecidos ao proletariado europeu; medidos, preparados e divididos em lotes de 20 a 30hectares (...) sempre trabalhados; produzindo-se e reproduzindo-se indefinidamente; nesse dia (...) o Brasil deixará no olvido todos os prodígios de progresso e prosperidade dos Estados Unidos, da Austrália e da Nova Zelândia".

Mesmo depois de perder também essa batalha, Rebouças ainda fala em instrumentalizar uma "contra-revolução" para derrubar a recém-instalada República. Ao chegar a Lisboa, na comitiva imperial destronada, publica o artigo A Questão do Brasil: Cunho Escravocrata do Atentado contra a Família Imperial, com o qual recebe convite para tornar-se correspondente do jornal britânico The Times. Tendo seus proventos de professor cortados em janeiro de 1892 e abalado pela morte de D. Pedro 2º um mês antes, Rebouças foi tomado por profunda depressão. Renegou o Brasil, por quem tão ardorosamente serviu na Guerra do Paraguai. Numa correspondência no fim daquele ano, dizia: "Já considero o Brasil numa nação do passado, como a Grécia antiga. É por isso que só trabalho para a memória de D. Pedro 2º, que foi, simultaneamente, nosso Leônidas, na invasão paraguaia, e nosso Péricles no belo e longo período de perfeita paz, desde o 1º março de 1870 até 15 de novembro de 1889".

Rebouças ainda encontrou ânimo para projetar uma última estrada de ferro em Angola. O engenheiro "razoavelmente alegre e bem-posto" dos anos 1870, freqüentador da sociedade, que teve o privilégio de ter consagrada a ele a ópera Fosca, de seu amigo e protegido Carlos Gomes, estava combalido pela pobreza. Com o Brasil insistentemente dominado pela elite agrária, decide se fixar na Ilha da Madeira, "meio caminho entre a América e África". Em pouco tempo, seu corpo é encontrado no mar.

 

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